quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Lembranças




O vidro curvo era totalmente transparente, e através dele eu via aquele imenso planeta azul. A sensação era indescritível – aquela massa imensa azul anil era coberta aqui e ali por porções verdejantes de terra, além de nuvens brancas que pairavam pouco acima. Senti o peito apertar. Ultimamente eu vinha tendo sensações emotivas muito fortes quando pensava naquele planeta. Agora, foi-me dada a oportunidade de viver fisicamente ali, juntamente com milhares de outros de minha raça. Em sendo assim, tínhamos estabelecido esta base extra-planetária, de onde monitorávamos o planeta, suas condições, e seus habitantes primitivos.

Naquele dia, eu e mais alguns pesquisadores descemos à superfície. Nossa compleição não era física o suficiente ainda para que pudéssemos ser notados por aqueles hominídeos. Os corpos que ocuparíamos, embora muito superiores àqueles nascidos naturalmente no planeta, ainda estavam sendo finalizados em nosso laboratórios. Já havíamos sido ligados energeticamente a eles, mas ainda não tínhamos permissão para o acoplamento total. Lembro-me de andar em meio àqueles nativos, muito cabeludos e todos nus, enquanto se reuniam em círculo para uma refeição.

Detive-me frente a uma fêmea que dava de mamar a sua cria – aquele ser, tão primitivo, tão mal-formado segundo nossos padrões, emanava uma aura rosada de puro amor maternal. Eu podia sentir que ela seria capaz de qualquer coisa por aquele ser pequenino e indefeso. Seus olhos tinham um brilho especial, de carinho e acolhimento, enquanto ela embalava seu pequeno: aquilo era divino. A emoção foi tão forte que tive de afastar-me.

Lembro-me de sentar-me à beira de um penhasco florido, aspirando o ar rarefeito e olhando o vale verdejante que se estendia lá embaixo. Aquilo era lindo! Tão diferente daquilo que estávamos acostumados…

Alguém invadiu meus pensamentos:

– Porque a tristeza?

Olhei para a direita e vi um de nossos amparadores. Ao contrário de mim, ele emanava uma aura dourada por todo o corpo. Tínhamos os mesmos olhos puxados, rosto anguloso, nariz aquilino. Mas enquanto minha pele era extremamente branca, quase azulada, a dele era levemente bronzeada, como se partículas douradas brilhassem sobre todo o seu ser.

Seus olhos tinham o mesmo tom âmbar, como fogo líquido, enquanto que eu tinha os olhos num tom azul-cinzento triste. Meus cabelos eram lisos e brancos, pouco abaixo dos ombros; os dele eram loiro-claros, também muito lisos, mas cortados à altura dos ombros.

Ele tinha uma compleição longuilínea, mas extremamente forte. Ele emanava calor, austeridade, poder, determinação. E eu não consegui articular um só pensamento diante disso.

– Muito em breve você estará aqui, entre eles. Todos vocês serão tidos como deuses; portanto, cuidado! Como viste, estas também são crituras divinas. E uma afronta à vida, não importa qual seja ela, é uma afronta ao Criador de Tudo que É.

Senti medo, receio. Olhei novamente em frente na tentativa de que ele não percebesse o que me ia n’alma, mas foi em vão.

– Seu receio é bom, e bem fundamentado. Nossa raça há muito tem apegado-se a seu orgulho de raça pura, e também por ter domesticado a todas as sensações do corpo emocional. Mas entenda: domesticar é diferente de mestria. A mestria só se alcança quando o ser consegue vivenciar todas estas emoções sem alterar-se, sem sair de seu centro, sem desequilíbrio. Ao contrário de vocês, os Mestres mergulham em toda e qualquer emoção, mas nunca saem de seu estado de equilíbrio emocional. Aí está a diferença. E foi aí que erramos enquanto povo.

Meu mentor fez uma breve pausa e respirou fundo, olhando o horizonte.

– Este estágio na terceira dimensão deste planeta será muito importante para todos vocês. Nós, os mentores, apoiaremos a cada um de vocês, em silêncio. Erros serão cometidos, mas eles também serão benéficos. Através das experiências vividas, retornarão ao seio de Órion como mestres de suas próprias capacidades desenvolvidas. No cadinho do sofrimento, do amor, do ódio, da compaixão, da irmandade, ressuscitarão seus corpos emocionais enrijecidos no orgulho e aprenderão a lidar com as energias geradas por ele. Dominarão seus impulsos justiceiros e guerreiros, pois aprenderão que o déspota de hoje será, sem dúvida, o escravo de amanhã. A Lei do Carma que rege este orbe trabalhará a seu favor. E assim, ganhando num dia e perdendo em outro, chegarão ao estágio evolutivo que necessitam para voltar ao lar.

Neste momento, algo inusitado me ocorreu: eu estava tão preocupada com a experiência de descer à forma física naquele planeta que não me dei conta de que muitos anos, talvez milhares, se passariam antes que eu pudesse voltar ao meu planeta natal. Senti uma tristeza indescritível.

– Sim, filha, muito tempo passará. Mas o véu do esquecimento encobrirá suas lembranças enquanto estiverem mergulhados na matéria. Assim, sentirão uma saudade incompreensível de algo que não conseguirão definir, o que lhes servirá como mola propulsora para o avanço constante. Vigia e cuida para que as baixas paixões não ganhem terreno muito rapidamente, é só o que posso aconselhar-te.

E assim ele sumiu, da mesma maneira que aparecera. Não suportei: eu nunca havia chorado, a não ser enquanto criança, mas ali derramei grossas lágrimas, enquanto um arco-íris lindíssimo desenhou-se no horizonte. Fiquei ali por muito tempo, até que o entardecer pintou de tons alaranjados o céu. Voltei à nossa estação com o firme propósito de sair vencedora daquela missão.


Fonte: http://sarahsiqueira.wordpress.com/2011/01/26/lembrancas/

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